Um Belo Alemão...

Um Belo Alemão.

Fritz era um homem bonito. Assim o considerava a maioria das jovens de Sapiranga, sua terra natal, um reduto de descendentes de imigrantes alemães.
Alto, atingia um metro e oitenta centímetros, num corpo de peso bem distribuído — setenta e oito quilos —, movia-se com desenvoltura.
O cuidado que tinha com seus loiros cabelos, como barbas de espigas de milho, era o mesmo que dedicava à indumentária. Vestia-se com esmero e orgulhava-se de possuir sempre automóveis novos.
Nos kerbs, bailes rurais com muito chope, marchinhas e polcas, Fritz brilhava dentre seus companheiros, como ele, de cabelos louros e sotaque caipira.
Fritz falava alemão e disso tinha orgulho. Não o gramatical, como informava quando instado a esclarecer que a língua corrente na colônia, em meio a parentes e amigos, era um alemão deturpado, corrompido pela erosão de dois séculos longe das terras de Goethe; contaminado por "bárbaros índios, portugueses, negros, italianos e outros", justificava um velho mestre colonial.
Na infância, Fritz dividira o tempo entre aulas na Escola Rural — onde não mais ensinavam alemão, como ocorria antes do Estado Novo e da Segunda Guerra — e o trabalho numa olaria de propriedade de seu avô, Fritz também, esse imigrante, vindo diretamente da Renânia.
Recordava, com saudade, histórias que o seu velho Fritz falava de mestres que ensinavam sobre o surgimento de unidades políticas como a dos saxões, francos e alemanos, suábios, que chegaram a se tornar verdadeira ameaça para Roma.
O entardecer, na primavera e no outono frescos do Rio Grande do Sul, era propício para os colonos, terminada a pesada jornada no campo, cumprido o ritual da janta, sentarem-se em grupos para ouvirem dos mais velhos histórias de guerras que se perdiam nos tempos — de godos e visigodos. Era-lhes motivo de grande orgulho nacional o estado prussiano, liderado por Frederico Guilherme e Frederico II, o Grande.
Em fragmentos não muito precisos, corriam pelas bocas aventuras de legendários soldados alemães na guerra dos Sete Anos, quando a Prússia enfrentou o poderio franco-russo.
Fritz, o jovem, teve uma oportunidade excepcional e acabou ganhando uma bolsa de estudos na Escola Técnica Parobé, de Porto Alegre, onde adquiriu conhecimentos teóricos e práticos de mecânica.
Ele sentia sempre, nas aulas do velho Parobé, algo estranho: parecia que já ouvira a respeito daquilo que os mestres falavam. As coisas não tinham o sabor da novidade. E ele não entendia o porquê. Teoria, prática e intuição atávica formaram a base sólida para uma vida de sucessos, como vendedor de máquinas e equipamentos.
Tinha, assim, como elementos propulsores de suas vendas um natural encanto, um sotaque colonial, vergado pelos anos de malandragem com os amigos da capital — e sólidos conhecimentos de mecânica. Ele oferecia produtos que conhecia com intimidade e auxiliava, no pós-venda, empresários rurais que ouviam histórias compostas de palavras portuguesas e muitas frases, expressões e bordões alemães.
Era véspera da partida. Elga, sua noiva, de longos cabelos loiros, talvez motivada pela distância iminente, quem sabe para ainda outra vez deixá-lo feliz e envaidecido, reiterou gasto conceito a seu respeito: — Como tu és bonito!
Pois, agora, ali estava Fritz, cheio de entusiasmo, viajando num moderno e imaculadamente limpo avião da Lufthansa, a caminho da Alemanha. Era a volta, em grande estilo, à terra do velho Schüller, seu bisavô. Este, um aventureiro contumaz, que sumiu certa feita deixando um filho, Fritz, para ser criado. O destino final da viagem, em verdade, era a África, mas isto, por enquanto, mostrava-se algo distante e absolutamente secundário.
Surpresas, entretanto, aguardavam-no, e a primeira não demorou quase nada.
Acertou com seu companheiro de viagem: seria ele o interlocutor com a aeromoça. Afinal, sublinhou, estavam tecnicamente em território alemão, embora a aeronave sobrevoasse ainda o Espírito Santo. As tranças da jovem atendente lançaram, no instante, Fritz ao reino mágico das histórias que seu avô repetia, criadas pelos irmãos Jacob Ludwig e Wilhelm Karl Grimm.
Traude, e não Rapunzel, a jovem e sorridente aeromoça, acercou-se da poltrona para indagar o que desejavam do carrinho repleto de vinhos, sucos e bebidas quentes. Fritz adiantou-se em um início de conversa — em alemão, ele assim pensava — que ia muito além do desejado pela atendente. Afinal, ela só queria saber de que bebida iriam tomar.
O choque foi instantâneo: ela demonstrou não entender palavra do que disse Fritz, nem se esforçou para facilitar a tentativa de relacionamento. Ele insistiu — tinha consciência de que falava alemão; era algo natural. Conversava em família.
Na igreja, falava com o jovem e o velho pastor luterano e deles ouvira longos sermões. Em germânico, apreciara histórias dos velhos, baladas românticas, marchas empolgantes e fragmentos de poemas de Friedrich Hölderlin. Fizera inúmeros negócios expressando-se em alemão.
— Está bem — pensou consigo mesmo, naquele instante de genuíno constrangimento —, não é lá o gramatical. Mas não ser entendido pela aeromoça era demais. Acachapante, para o orgulho cambaleante de Fritz, foi ver a cerveja e o copo de vinho branco do Reno que chegaram à mesinha, colada à poltrona do avião, graças à troca de breves informações entre Traude e o outro brasileiro. Falaram em inglês.
Agora viam-se em outro cenário:  Longe ficaram as ruas de calçamento de pedras regulares, com casas e igrejas góticas de telhados pontiagudos. Distante quedou-se a gente apressada, que se movia na paisagem plúmbea do inverno glacial europeu, da qual nem os olhos e os dentes viam-se, com corpos cobertos por inteiro de pesados e cinzentos abrigos de lã.
Vaneceram-se os estranhos que não se comunicavam, sequer se olhavam, imersos na ânsia de fugir do frio de enregelar. Desapareceu, como num sonho, aquele mundo que se apresentou indiferente a Fritz. Poderia ser ele, no revelador olhar severo do agente de imigração, que detidamente examinou seu passaporte, mais um futuro imigrante ilegal para somar-se às ordas de portugueses, gregos e espanhóis que disputavam as colocações mais modestas no mercado de trabalho alemão.
Estavam, Fritz e seu companheiro de viagem, numa clareira, em meio à densa floresta, onde uma barcaça, preguiçosa, num pequeno afluente do rio Volta, aguardava a chegada de um grupo de mulheres. Estavam envoltas em leves panos multicoloridos. Carregavam sobre as cabeças vasos, galhos secos de árvores, animais mortos, potes de água, capoeiras e outros pertences. Às costas, levavam os filhos. Vinham todas num alegre alarido. Falavam umas com as outras e riam com seus corpos, não apenas com a boca. Tocavam-se, especialmente nas mãos livres, em sinal de constante e contagiante felicidade.
Eram parte, aquelas africanas — como o compacto verde da mata, da qual haviam irrompido minutos antes —, de um concerto no qual pontificavam o Sol, intenso e onipresente, refletindo raios dourados nas águas do Volta e intrometendo-se por entre a copa das árvores, para salpicar, aqui e acolá, sua luz e calor. Também inseria-se nessa harmonia o sibilar do vento, quase uma brisa, bulindo na copa do mato, a chalreada dos pássaros, a bataria dos macacos e, ao longe, o bramido dos animais de porte.
Já na barcaça, ao lado da mãe, uma menina se distraía brincando com sua tartaruga. Os homens eram poucos: os condutores da balsa e três passageiros que, num canto, conversavam sobre as coisas de seu cotidiano. Eram, obviamente, todos negros.
Fritz constituiu-se, naquele instante, no elemento dessemelhante. Aparentemente, ninguém notou nada.
As mulheres foram-se acomodando nos bancos da balsa e não olhavam, mesmo de soslaio, para a figura alta, loira e branca. Da mesma forma os homens, ocupados em sua chacrinha, em que, com frequência, seus corpos inteiros riam, pareciam ignorar o estanho. Fritz sentia-se feliz porque não lhe molestavam com olhares indiscretos ou hostis, comuns lá na sua Sapiranga, quando estranhos apareciam.
Espalhou-se como pôde no banco próximo da menina que brincava com o pequeno jabuti. As amarras da barcaça foram soltas e, com remos, os fortes operadores fizeram-na iniciar a travessia. Afastava-se a barca e deixava na visão de Fritz árvores tentaculares, outrora companheiras de outras arrancadas para darem lugar à estrada que desembocava no cais de onde se descolara a balsa.
Ele conseguiu estimar, já há certa distância da margem, a altura das árvores maiores: mais de trinta metros. E formavam, sorriu para si mesmo, na lembrança da praia de Cidreira, um magnífico túnel verde. Ainda viu, nos galhos superiores, macaquinhos pulando de eira para beira. Aos poucos, na medida em que a distância tornava-se maior, teve a nítida impressão de que o túnel fechava suas portas. Um arrepio fez-lhe, numa fração de segundo, sentir profunda sensação de insegurança.
Voltou seus olhos para a pequena figura que, placidamente, a seu lado continuava brincando com o cágado e experimentou o desaparecer do sentimento desagradável. Reanimado, mais pelos mecanismos de seu cérebro, que lhe devolveram no instante a segurança abalada pelo fechar das portas do túnel verde, do que por qualquer gesto ou ação da menina — aproximou-se de Abena.
Sua segunda surpresa desagradável ocorreu no mesmo instante. Assustada com a presença do estranho, Abena encolheu-se toda e irrompeu convulsivo choro. Fritz recuou de imediato, também assustado.
Os adultos ocasionalmente já haviam visto um que outro homem de cabelos claros e pele descorada. Abena, entretanto, pela primeira vez em sua vida, via bem de perto um homem branco. Também ela experimentou um sentimento atávico. Sem jamais ter-se relacionado de qualquer forma — mesmo nas histórias contadas no dia a dia de sua tribo — com um homem branco, reagiu como criança ante o desconhecido. Ali estava algo ignorado que, não obstante, seu instinto avisava ser perigoso. Abena escapou para os braços próximos de sua mãe e ali se aninhou, apenas soluçando... soluçando, até que adormeceu, enquanto sua tartaruga escapava para a liberdade, movimentando-se lerdamente para a borda iminente do banco, até que na fresta escorregou para as águas límpidas do Volta, no seu rumo indefesso para o grande lago de Akosombo.
O velho Apatú recebeu os brasileiros na outra margem do rio, levando-os, em seu antigo Land-Rover, para o pequeno povoado de Kpandu, à margem do qual Fritz iria supervisionar a montagem de uma olaria fabricada no Rio Grande do Sul, por descendentes, também, de alemães. O guten tag, com que o velho Apatú saudou Fritz, antes de oferecer um good afternoon para seus convidados, naquela tarde que já escapava para o entardecer, apressando nos humanos longe de casa o sentimento imenso de insegurança, fez o homem de Sapiranga recompor seu abalado ânimo, ante a constatação desagradável — ele assim tinha avaliado — de que podia ser belo para Elga, para Frida, para Isolde, para Traude, sobremodo para a mãe Helga — mas era desagradável, como um espantalho de lavoura, para uma tranquila menina de cabelo carapinha, como estopa negra, pele escura, lábios grossos, muito diferente das pequenas Grethels, pálidas, cabelos lisos como barbas de milho e lábios finos.
Apatú levou-os para um simulacro daquilo que os europeus haviam batizado como guest-houses — casas para convidados. Nas grandes cidades ou em sítios onde laboravam com minerais preciosos ou estratégicos, os governos ou empresas internacionais construíam moradias tão confortáveis que fizessem com que os executivos e técnicos estrangeiros se sentissem, o mais possível, como se estivessem em casa. Tinham climatização, mobiliário adequado, piscinas e canchas de esportes.
A que acolhia Fritz, naquele instante, era um velho bangalô estilo colonial, com paredes de tijolos de barro mal amassado e pobremente cozido. O telhado era coberto por sapé e em seu interior não havia forro. As janelas, em madeira rusticamente trabalhada, sequer contavam com telas ou filós para proteção contra perigosos mosquitos, comumente transmissores de malária. Seu exterior fora um dia pintado de verde.
Apatú determinou os quartos e sugeriu que retornassem, assim que possível, para o jantar. Este foi precedido de um aperitivo agradável ao anfitrião e seu convidado especial: brindaram reiteradamente com schnaps, o mesmo destilado que se tornou presença inarredável nos funerais por todo o país, mesmo nas mais remotas porções do território. A luz, que projetava fantasmagóricas sombras contra o solo, postada num ponto alto da sala era, ainda, de lampião. Os rostos, marcados pelo claro e escuro da tíbia claridade, davam a impressão de expressões muito cansadas. Importado da Inglaterra, comum, da mesma forma, em comunidades isoladas do Reino Unido, deixava no ar o cheiro forte da querozene sendo queimada. Junto com as máquinas, que já aguardavam por Fritz sob um telheiro mandado construir por Apatú, viera um gerador de eletricidade, que alteraria, adiante, a rotina da vila.
Foi servida uma sopa de amendoins macerados , recheada de carne de peixe e partes de aves, como pés, pescoço e asas de galinha. Depois, arroz, fatias de inhame no vapor, cobertas com um molho de ervas, galinha frita com guarnição de banana de santa-fé também frita, formaram a parte sólida do jantar, que Apatú chamou de main course. Beberam cerveja rural, morna. Encerrada a refeição recolheram-se para dormir.
Fritz, cansado pela longa jornada que se iniciara cedo na urbana Acra, estendendo-se na direção da região do Rio Volta até atingir Kpandu, em meio a trechos da savana e largos pedaços da floresta, encostou a cabeça no travesseiro. Estranho, teve a sensação de que apenas fechara os olhos. Abertos, via Abena a seu lado, dizendo:
— Me segue, por aqui, vou te levar a salvo.
Na confusão do momento ‒ o quarto mergulhado na penumbra, apenas os pequenos olhos de Abena e seus perfeitos dentes de marfim refletiam a luz que a lua fazia penetrar pela janela ‒ Fritz surpreendeu-se, pois a menina não o temia; e, mais, falava com ele em alemão. — Me segue, é urgente, tu corres perigo. A guria deixava à mostra, na face, a expressão de quem sabe o que está fazendo. Por isso, conseguiu convencer, no instante, Fritz a levantar-se. Pularam com facilidade por sobre o parapeito da janela, aberta para não obstar a entrada da aragem noturna, projetando-se na noite africana, em plena região da floresta.
Correram. Fritz sentia-se meio tolo por não saber do que se tratava. Mas, corria assim mesmo, junto com Abena. Embrenharam-se por entre cacaueiros em pequenas roças, numa corrida por alamedas naturais prateadas, pela incidência dos raios de luz da lua, que vazavam, aqui e acolá, no telhado vegetal vivo, que, de dia, protegia os pés de cacau.
Chegaram, então, próximos a uma ampla clareira, onde se viam homens vestidos da mesma forma, todos em mangas de camisa e usando uma espécie de capacete de lona. Tinham, também, armas de fogo. Velhos mosquetões e fuzis. Ocultos no bosque, ouviram os preparativos para o ataque que iria ocorrer em poucos instantes. Os homens eram alemães, parte de uma tropa acantonada na Togolândia, pedaço da efêmera África Ocidental Alemã. Ouviu, no refúgio que o escondia, detalhes e razões do ataque.
O bangalô, de onde havia sido afastado por Abena, mantinha um grupo de rebeldes europeus e africanos, que teimavam em impedir que fossem instaladas máquinas alemãs para a produção de tijolos e telhas.
Representavam exportadores desejosos de que o material viesse já pronto de além-mar. Eram elementos de má índole em contraposição ao trabalho benemérito, especialmente de missionários, interessados em instruir os nativos, torná-los cristãos, melhorar as condições de higiene e saúde, construir casas e saneamento básico, usando o barro, matéria-prima abundante naquela parte.
Uma voz de comando foi dada, e os homens de camisas de mangas curtas e capacetes de lona marcharam destemidamente em direção ao bangalô do velho Apatú. Passaram a ouvir tiros em quantidade crescente, na direção do bangalô. Fritz e Abena, lado a lado, a tudo espiavam, até que foram descobertos por um soldado. Ele sentiu, então, que uma dor intensa fez tremer seu corpo, seguida de um horrendo estrondo. Pôde ver, ainda, Abena dobrar-se sobre si e lastimar o que ocorrera. Desmaiou, então. Mas, estranho, o desfalecer foi um acordar.
Um negro gigantesco, com o rosto e partes de seu dorso pintados de branco e mãos enegrecidas por carvão, curvava-se e tratava de aplicar emplastros sobre o furo da bala que transfixara seu corpo. Pôde olhar bem o orifício, mas não viu sequer um filete de sangue. A dor também estava ausente. O feiticeiro da tribo havia curado seu ferimento e agora afastava-se imponente, enquanto ele e Abena viam-se abandonados, por pouco tempo, entretanto. Surgiu logo outro negro, esse também alto, porém encurvado — era um velho. Olhando sobre o indefeso Fritz, o ancião iniciou um solilóquio em alemão.
Contou que, de tempos em tempos, desde o início do século, viam-se às voltas com tropas européias, que insistiam em destruir a obra que missionários germânicos realizavam. E que ele, Fritz, deveria, para o bem de todos, finalizar os trabalhos iniciados por um velho alemão de nome Schuller, passado agora quase um século.
O velho explicou a Fritz que um belo homem — muito alto, muito claro e de cabelos como fios da espiga de milho — havia ensinado a seu pai a língua alemã, enquanto montava as máquinas de fazer telhas e tijolos de barro. Mas que, depois de funcionarem perfeitamente, produzindo belas peças cerâmicas, foram arrasadas por outros europeus, que falavam a língua do outro lado — francês, fala-se no Togo. Fritz começou a sentir que podia se mover. Teve certeza de que conseguiria falar com o velho. Mas foi obrigado, por um gesto do ancião, a continuar quieto.
O homem, agora falando diretamente para o jovem a seus pés, garantiu-lhe que passaria incólume pelas dificuldades da região e completaria — sem a febre, sublinhou — o trabalho de Schuller. O velho foi-se afastando.
Abena, com um sorriso que mostrou toda sua arcada de marfim, depôs o jabuti sobre o peito desnudo de Fritz. A tartaruguinha deslocou-se desajeitadamente, passando por sobre a região de seu corpo em que, momentos atrás, havia uma perfuração de bala e que agora mostrava-se, no quase escuro, íntegra, como havia nascido. Fritz ensaiou com as forças de seu corpo o ato de levantar-se. Mas caiu.
Deu um pulo, mas estava já na cama. Viu-se sentado, meio estonteado. O dia havia clareado. Os ruídos do ambiente eram os de uma manhã num lugar bucólico. Nas paredes não havia sombras marcantes, senão que uma luz uniforme, que emprestava um tom pastel ao quarto onde dormira. Aves e pássaros chilravam. No ar havia um cheiro de mato únido, do orvalho que se formara, esparramado, nas folhas das árvores ou no capim à volta. E, ao longe, ouvia-se a voz do velho Apatú, dando ordens em seu linguajar nativo, no qual Fritz pescava, a esmo, palavras em alemão.
Fritz teve vontade, no café da manhã, de contar sua experiência noturna.
Não o fez. Saiu, pouco após, para uma inspeção preliminar a alguns locais que poderiam acolher a primeira olaria naquele recanto da África. Pensava assim quando deixou o Brasil. Sua experiência noturna — a aventura bélica, protegido por Abena — punha no mesmo nível de dúvida, ser a unidade que iria montar, verdadeiramente, a pioneira e haverem os europeus lutado pela fábrica de cerâmicos. O esplendor radiante do novo dia, que incutia no espírito de Fritz uma sensação de renascimento, fê-lo desviar a emergente e, considerou para si mesmo, irrelevante dúvida. Chutou uma fruta de cacau já oxidada caída no chão; olhou distraidamente para o céu de profundo azul, sem qualquer nuvem e deu um impulso enérgico no corpo esguio, estirando os braços para trás, aprumando a cabeça, os olhos agora fixos à frente. Foi adiante, soprando, lábios semicerrados, como no bocal de um instrumento, o som de uma velha marcha marcial colonial alemã.
Foram caminhando por entre pequenas roças — onde plantavam-se mandioca, inhame, abóboras, batata-doce, pepino, pimentas e cacau — no afã de alcançar os pontos prováveis para a fábrica. Bom indício de que haveria jazida de barro, era a presença, nas imediações, de oleiras. Eram mulheres que fabricavam vazos e potes de água, vendidos à beira de uma distante estrada. Em meio à caminhada, Fritz tropeçou em algo. Fixou o olhar para o chão e deparou-se com uma roda dentada. Viu uma engrenagem de metal. Sua formação o fez parar e examinar do que se tratava. Encontrou, mais adiante, atrás de um arbusto, a parte maior da qual era integrante a roda dentada. E reconheceu uma velha maromba.
Soube, por Apatú — num alemão muito parecido com o seu, cheio de corruptelas — que pastores alemães que edificaram escolas de tijolos e telhas, meio século antes de Fritz aparecer, haviam construído ali uma olaria rural, semelhante àquela que ele viria a montar, fabricada no Sul, inspirada nos mesmos artesãos germânicos.
Pensou em seu bisavô Schuller. Refletiu, então, que o mal havia prevalecido sobre o bem. Alguém, nalgum momento do passado — quem sabe os homens acampados no velho bangalô, ou algum chefe despótico, contrafeito com a engenhoca de homem branco — havia destruído a antiga olaria, fonte geradora de melhoria e bem-estar. Mas um novo turno se iniciaria na roda dos tempos. Outra máquina, essa comprada no Brasil, concepção, entretanto, de teimosos colonos alemães, estava por ser implantada.
Lá estava Fritz noutra clareira. Vestia bermuda, botas e um chapéu de lona, que o velho Apatú fornecera. O dorso desnudo mostrava uma mossa, quase uma cicatriz, pouco acima do estômago. Observado ao longe, bem ao longe, por Abena, fixou um olhar para ela e, com um pé-de-cabra, levantou com energia a tampa do primeiro caixote.
Apatú correu com um copo de schnaps e entregando-o a Fritz saudou:
— Prosit!
Era um som que, mesmo Traude, a aeromoça da Lufthansa, iria entender e fazer Fritz genuinamente feliz, como estava, naquele momento, suor escorrendo pela face, cabelos loiros em desalinho, não em Sapiranga nem na Renânia, mas em Kpandu, Gana, costa oeste da África. Ficou em definitivo na Tumba dos Brancos — White Man's Grave —, título que mereceu aquela parte do planeta, pela mortandade de europeus vítimas da malária. Ninguém mais o chamava de Fritz. Era o Kuakú, nome dos nascidos na quarta feira.
Fez surgir, do barro e da lenha, escolas, igrejas, um hospital e casas feitas de tijolos e telhas de barro, saídos das máquinas de um Schreiner, um Schuller... ou de um Fritz.
Exercitou o alemão colonial. A muitos ensinou português e tornou-se um mestre peregrino. Deu aulas na Escola Politécnica de Kumasi, semelhante ao seu Parobé, e transmitiu-lhes o conhecimento de algumas técnicas agrícolas. Assistiu a festa da puberdade de Abena, quando dançou com os nativos. Bebeu do apetachi — o schnaps local, e aprendeu sua língua, o ewe.
Não contraiu sequer uma vez a malária. Tal como num conto de Grimm, viveu para sempre...

Fim


O fato: Uma homenagem a Eric Saft, que fala alemão colonial, encantou os africanos com seus conhecimentos de barro, tijolos, telhas, cerveja e outras coisas,
além de ajudar a tornar possível a chamada Brick Revolution (Revolução do Tijolo), em Gana.
Mas não aprendeu o Ewe, e voltou para o Brasil.